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30 de mai. de 2013

Entrevista com o escritor e colunista: Marcelo Coelho




Formado em Ciências Sociais e mestre em sociologia pela USP. Ensaísta, escritor, colunista e membro do conselho editorial da Folha de São Paulo. Tradutor de Voltaire e Paul Valéry. Autor de "Tempo medido" (Publifolha, 2007), "Noturno" (Iluminuras, 1992), "Jantando com Melvin" (Imago, 1998) e "Cine Bijou" (Cosac Naify/Edições SESC SP, 2012), entre outros, Marcelo Coelho concedeu-me a entrevista que segue, onde fala sobre a relação burguês/boêmio, Chesterton, "petismo de direita", a "classe média que se vê refletida nas páginas da Veja" etc. 

Ao ser perguntado se a oposição errou ao não ter buscado o impechment de Lula no caso do "mensalão", Coelho responde: "Acho que tentar o impeachment do Lula seria um erro de proporções venezuelanas". E diz mais... 

A Marcelo Coelho, o meu muito obrigado. Estou grato e honrado com a abertura, a atenção e a generosidade. Confiram: 


AETANO - Segundo Luc Ferry ("A Revolução do amor", Objetiva, 2012), "era necessário que os valores e as autoridades tradicionais fossem desconstruídos pelos boêmios para que o capitalismo, também ele moderno, pudesse entrar na era do grande consumo, sem o qual sua expansão seria simplesmente impossível". Para aquele autor, os boêmios queriam acabar com o mundo burguês, mas, sem o saber, o que fizeram foi expandi-lo e fortalecê-lo como nunca. Em suma, de acordo com Ferry, o boêmio é irmão do burguês. Você concorda?

MARCELO COELHO - Bom, não li o livro de Ferry, de modo que não conheço o contexto da afirmação, e menos ainda sei aonde ele quer chegar. Trata-se de desacreditar o modo de vida boêmio? Mas que boêmios são esses? Há o boêmio-artista, um criador. Há o boêmio-dândi, o "decadentista", no gênero dos personagens de Oscar Wilde, que é um fruidor e um aristocrata. Há o boêmio-lumpen, o desajustado, o amalucado, o sem eira nem beira, um refugo da sociedade capitalista. Entende-se aqui "capitalista" como o sistema da primeira revolução industrial, e esses três tipos como presentes na sociedade vitoriana. Bem, é óbvio que o capitalismo se expandiu para além da sociedade vitoriana e de sua moral excessivamente rígida. Podemos perfeitamente considerar que esses três tipos representaram a crítica ao moralismo vitoriano, ok. Era esse o tipo ideal de capitalismo? Não necessariamente, imagino. Por que não dizer que, dado o processo de liberação dos costumes, surgiram novas necessidades de consumo, maior competitividade sexual, e que o capitalismo, como sempre, tratou de atender a essas demandas? Por outro lado, podemos pensar que os ganhos de produtividade e as lutas sociais pelo tempo livre determinaram a emergência, primeiro, de uma adolescência estendida no tempo, com gente de vinte a trinta anos sem necessidade de entrar diretamente, ou sem poder entrar diretamente no mercado de trabalho. Foram atores importantes na contestação do capitalismo, na aquisição de novos bens culturais, na produção de arte, na libertação dos costumes. O processo corre em paralelo-- o capitalismo trata de adaptar-se a essa nova realidade cultural. Por que apontar o dedo, como faz Ferry, dizendo que "ajudaram o capitalismo a se expandir"? Não podemos dizer igualmente que ajudaram "o socialismo a se expandir"? A igualdade (entre os sexos, por exemplo, a se expandir)? A liberdade individual a se expandir? Ou que ajudaram a eliminar os resquícios da autoridade patriarcal, que era aristocrática e burguesa conforme a situação, e que não era essencial, exceto num primeiro momento, ao capitalismo? Penso na necessidade de alianças, na Inglaterra, entre industriais e donos de terra. Era uma situação em que o casamento imposto pela família podia ser essencial ao status quo. Deixa de ser, provavelmente, mais tarde; seria preciso um trabalho de historiador para dizer por quê. O que me incomoda, em suma, nessa frase de Ferry é ver a ironia da história apenas no sentido "ruim" --"olha aí, os críticos do sistema acabaram servindo ao sistema"-- para desqualificar a crítica ao sistema, sem reconhecer que a crítica também teve suas vitórias sobre o sistema, que este se modificou (basta pensar na situação das mulheres).

AETANO - Concordo com vc, Marcelo. E Luc Ferry consigna que existem vários boêmios, e conflitos entre eles, que, todavia, têm algo em comum: a juventude, a crítica aos filisteus e ao modo de vida burguês. Registra também que o burguês, embora vencedor na arena do consumo, é um perdedor no terreno dos costumes. Observo, porém, que o burguês está por aí. Mas e o seu irmão? Onde estão os boêmios de hoje? Não lhe parece que eles foram "incorporados"? Provocando mais ainda: não lhe parece que o boêmio de hoje é um entediado?

MARCELO COELHO - Bom, criou-se até a figura do "bohemian bourgeois", o alternativo certinho, artista e rico. Mas não vejo o desaparecimento de figuras boêmias quando passo na Praça Roosevelt, por exemplo --muito remotamente incorporados ao sistema, a menos que seja quando conseguem uma miséria de alguma verba cultural. A questão é que a boemia não é oposta ao mundo burguês, como o proletariado. A boemia se localiza na oposição ao mundo do trabalho --assalariado ou pequeno-burguês. Criam-se vários subtipos de pessoas não adaptadas ao trabalho assalariado --o artista mambembe, o tradutor por conta própria, o jornalista free-lancer... Chamam isso na França do "intelectual precário". Há também os boêmios artistas, que podem ser cooptados posteriormente na medida de seu sucesso. O boêmio, hoje, entediado? Mas o "spleen" de Baudelaire tem mais de 150 anos.

AETANO - [rssrs]... É, como dizia Walter Benjamin, Baudelaire era um lírico no auge do capitalismo... 
Marcelo, "Ortodoxia" ("Ilustrada", Folha de São Paulo, 06/02/2008) e "O demolidor de clichês" ("Ilustríssima", Folha de São Paulo, 24/10/2010) estão, para mim, entre os melhores textos que você já publicou na Folha. Ambos cuidam de G. K. Chesterton. Como você vê a recepção desse escritor no Brasil? Você não o acha negligenciado? Mais que negligenciado, você não acha que há um preconceito em relação a Chesterton só porque ele era declaradamente católico? 

MARCELO COELHO - Acho que Chesterton não é negligenciado apenas no Brasil. Criei interesse por sua obra lendo Jorge Luis Borges, que era especializado em preferências literárias "heterodoxas" para sua época. Chesterton se sabia minoritário e extravagante, num meio anglicano e cientificista. Fez da extravagância uma arte, mas não deixa de ser extravagante. Enquanto isso, o pensamento católico tratava de se modernizar, adaptando-se a Darwin e Marx. Natural que também nesse ambiente Chesterton ficasse deslocado.

AETANO - Na cultura brasileira, a esquerda sempre foi hegemônica. Hoje, o pensamento conservador, ainda que meio caricato e desorganizado, já começa a ter mais espaço em jornais, revistas e em publicações diversas. Por exemplo, estamos prestes a receber a primeira tradução de "The Conservative Mind", de Russel Kirk, e apenas em novembro do ano passado foi publicada, aqui no Brasil, a tradução de outro cânone do conservadorismo: "Reflexões sobre a Revolução na França", de Edmund Burke (TopBooks). Como você vê essa emergência conservadora? Será que ela levará a uma definição das posições políticas por aqui, ou seja, será que um dia teremos a esquerda à esquerda e a direita à direita (tomei "direita" e "conservadorismo" como sinônimos)?

MARCELO COELHO - Pois é, Aetano, acho que o fenômeno no Brasil segue a tendência internacional, que cresce a cada novo "marco histórico": o sucesso eleitoral de Reagan e Thatcher; a queda do Muro; o Onze de Setembro. As posições políticas já estiveram bem mais definidas por aqui. Com o crescimento conservador, a esquerda tem procurado na verdade se moderar --pelo menos é o que acontece em outros países, a começar dos Estados Unidos, onde há medo de assumir como "liberal". Isso no plano das ideologias políticas. Na prática, toda experiência de poder tende a tornar mais direitistas os partidos de esquerda, e isso acontece aqui também. Soma-se a isso a aliança entre petismo, corrupção e evangelicos, para que surja um verdadeiro "petismo de direita" no país.

AETANO - Mas você não acha que a corrupção é a coisa mais bem distribuída por aqui? Ou seja, não é maniqueísta associar "corrupção" e "petismo" para cunhar a expressão "petismo de direita", como se a corrupção fosse um atributo inerente aos adeptos do direitismo? 

MARCELO COELHO - Claro, a corrupção é bem distribuída mesmo. O petista de direita, entretanto, é aquele que em vez de falar, como antes, em mudar o modo de se fazer politica no país, fala agora em defesa da razão de Estado e argumenta que faz o que todo mundo faz. Defende os aliados conservadores argumentando que contra eles a imprensa exerce um preconceito de classe. Apoia megaprojetos de infraestrutura que agridem o meio ambiente dizendo que os ecologistas são chatos e fantasiosos. Diz que estão no mundo da lua os deputados que se opõem a cobrar taxa previdenciária de quem já se aposentou. Defende um ministro que violou o sigilo bancário de um caseiro. Etc.

AETANO - A sua coluna "Questões de Ordem", que cobriu as sessões do julgamento do mensalão, foi considerada, com razão, "o melhor relato da imprensa brasileira sobre o julgamento". Após ter acompanhado tão de perto o caso, você acha que a oposição errou ao não buscar o impechment de Lula?

MARCELO COELHO - Acho que tentar o impeachment do Lula seria um erro de proporções venezuelanas. São discutíveis as provas contra o José Dirceu. Contra o Lula seria necessário um passo muito mais temerário. O impeachment é um processo muito político. Fazer isso contra um presidente com altos índices de popularidade, com bons resultados na economia? Collor teve contra si não apenas os escândalos de corrupção, mas altíssimos índices de inflação e desgoverno.

AETANO - "Eu odeio a classe média", disse Marilena Chauí. Na sua coluna de 22/05/2013 (Folha de São Paulo), você afirma que concorda com Chauí, "se definirmos classe média como o grupo que se vê refletido nas páginas de 'Veja'". Que classe média é essa que se vê refletida nas páginas de 'Veja'? Quais são seus outros traços característicos? 

MARCELO COELHO - Bem, acho que uma boa definição foi dada, se não me engano, por Roberto Schwarz quando disse que no Brasil os beneficiários do sistema se sentem vítimas do sistema. Seria, em tese, aceitável essa atitude, quando se pensa que a pessoa tem de gastar em segurança e educação aquilo que não é provido por um Estado mais eficiente. Mas fico bastante incomodado quando as pessoas reclamam dos impostos e dizem que pagariam com prazer se o Estado lhes devolvesse em serviços aquilo que pagam. Ora, um país que ainda está sendo construído tem gastos imensos em infra-estrutura, etc., que mal e mal se retomam, enquanto todo mundo ganhava com os juros que o governo pagava para se segurar com a dívida pública... Enquanto isso, leem a Veja, que trata aprovativamente de despesas com aniversários de pets e valets de luxo. Tudo se dirige de tal forma para o interesse do consumidor individual, que até críticas corretas à corrupção se contaminam pela mais descarada ausência de compromisso com o bem-estar geral da população.

AETANO - No último capítulo de Cândido, Pangloss, Cândido e Martinho encontram um velho turco que, alienado dos acontecimentos que o cercam, dedica-se somente à família e ao trabalho. O trabalho, segundo o velho, é o remédio para três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade. Cândido, após refletir profundamente sobre o discurso do turco, concluiu: "É preciso cultivar o nosso jardim". Ao que Pangloss responde: "Tendes razão, pois quando o homem foi posto no Jardim do Éden, foi ali colocado ut operaretur eum, para que nele trabalhasse, o que prova que o homem não nasceu para o repouso".

"É preciso cultivar o nosso jardim", repete Cândido, pouco depois, e o romance acaba. Sobre esse final, Flaubert diz: "a marca do mestre está nessa lacônica conclusão, tão estúpida quanto a vida em si". 

É isso mesmo? A vida é tão estúpida quanto? Ou é a conclusão dessa grande obra que não está à altura?

MARCELO COELHO - Acho que Flaubert sempre gosta de ver estupidez em tudo. Isso não o torna especialmente inteligente. Pelo menos, é claro que Voltaire era mais inteligente do que Flaubert. Nenhuma frase, por si só, seria capaz de resumir toda a sabedoria de um autor ou todo o conjunto da experiência humana. A própria frase de Pangloss, concordando com a do turco, ironiza-a ao mesmo tempo. Pode-se entendê-la, de qualquer modo, de formas muito variadas. Depende do que você entende por jardim; trata-se apenas daquilo que convém a seu interesse material egoísta? Ou o jardim pode ser o país, para um governante, ou a obra, para um escritor? Trata-se de fazer bem aquilo que se pode fazer? Não acho tão tolo assim.

AETANO - Sim, a interpretação está naquilo que entendemos por "jardim", tanto que, logo após a declaração de Pangloss, o narrador esclarece que "cada um se pôs a exercer os seus talentos": Cunegunda "se tornou uma excelente confeiteira; Paquete bordava; a velha cuidou da roupa"; Giroflée tornou-se marceneiro e Pangloss continuou filósofo. Ainda assim, Marcelo, não é irônico, trivial e até mesmo frustrante que o "jardim", metáfora de um iluminista, seja uma flagrante repetição de uma parábola bíblica (refiro-me à parábola dos talentos: Mt 25, 14-28)? 

MARCELO COELHO - não conhecia a parábola não!! Talvez o contexto mude tudo... depois de tantos horrores no romance a frase ganha um efeito de alívio, seria na verdade difícil imaginar um outro desfecho. Nesse sentido não acho frustrante...

AETANO - "Há bastante tempo não aparece um filme realmente difícil de entender. Penso naqueles de arte que passavam no cine Bijou aí por 1970".

Assim você começa "O que eles querem dizer com isso", coluna publicada na Folha de São Paulo, em 01/05/2002. 

"Cine Bijou" é também o título de um livro seu com ilustrações de Caco Galhardo (Cosac Naify/Edições SESC SP, 2012). O livro é um relato autobiográfico, nostálgico, mas também muito engraçado. Nele, em certa altura, você diz (transcrevo também para a diversão dos leitores desta entrevista):

"[...] Os [filmes] que vi no Bijou eram ainda mais difíceis de entender. Um casal brigava interminavelmente numa úmida ilha norueguesa. O homem consertava o telhado da casa de madeira. A casa, pintada de marrom escuro ou de preto, parecia atrair todo tipo de nuvens. O homem deixa cair o martelo lá de cima. O fato assume uma importância transcendental. De repente, tudo para. A atriz aparece à frente de uma parede branca e, como se fosse uma entrevista, diz o que acha da personagem que ela mesma está interpretando. A história continua; a mulher tem um pesadelo, filmado em preto e branco, com um monte de velhos remando um barco. Os símbolos se acumulam como nuvens. Alguém lê uma carta. A câmera passa com rapidez entre as letras datilografadas da carta, filmadas muito de perto, como se não as conseguisse ler. Acabava o filme e, nessas horas, eu me sentia extremamente idiota." (p. 26).

Pois é, você não acha que no meio "cult" vige ou paira no ar a ideia de que a qualidade de um filme é diretamente proporcional à sua incompreensibilidade? Ou isso já está fora de moda? 

MARCELO COELHO - Não sei, me parece que está fora de moda. Caso típico, "Solaris", de Tarkovski, encarado na época como coisa seríssima. Nunca assisti, e agora ninguém assiste, eu acho. O "cult", como eu entendo, é fruto do processo de reavaliação pelo qual uma obra meio marginal, ou especialmente típica, da cultura de massa de um período se eleva ao plano da alta cultura na geração seguinte. Filmes B, filmes noir, pequenos mestres desconhecidos do cinema de 1940 são candidatos a cult. O "meio cult", como você diz, ou seja, os "culturetes", se deixa atrair por isso ou pelo cinema não-americano em geral, mas compartilha de certo desapreço pelo alegórico, que era a marca do cinema mais prestigiado por volta de 1970.


25 de mai. de 2013

Aforismos




Amar é acordar e sentir saudade da mulher que ao seu lado dorme.


O grifo é um grito sem a desagradável noção de atrito. 


24 de mai. de 2013

Myrna (pseudônimo de Nelson Rodrigues) escreve:




[...] Existe, minha amiga, uma arte de dar conselhos, e outra arte de os receber. Para mim, para meu gosto pessoal, o melhor e mais sábio conselho seria este: - “Faça o que quiser”. E, com isso, daremos, à pessoa, o direito de optar entre o bem e o mal, o certo e o errado. Porque ninguém tem mais direito, do que o principal interessado, de acertar ou errar. É preciso que ele fique com as consequências, glórias e prejuízos do bem e do mal que faz. Exemplifiquemos: se eu aconselho uma pessoa a proceder bem, e ela obedece, a virtude é minha, e não da pessoa. Outra hipótese: se eu digo “faça o que quiser” e ela procede bem, então, sim, o mérito é, realmente, da pessoa. Por outro lado, existe uma arte de receber conselhos. E essa arte consiste em não os seguir, salvo em casos excepcionais, e quando ele coincide, por acaso, com os nossos pontos de vista e a nossa sensibilidade moral. [...].



Rodrigues, Nelson. “Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo: o consultório sentimental de Nelson Rodrigues” -- São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 102.

20 de mai. de 2013

Olavo Bilac: "Inania Verba"




                                 Inania Verba


Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,
O que a boca não diz, o que a mão não escreve?
-- Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,
Olhas, desfeito em lodo, o que se deslumbrava...

O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava:
A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
E a Palavra pesada abafa a Idéia leve,
Que, perfume e clarão, refulgia e voava.

Quem o molde achará para a expressão de tudo?
Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas
Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?

E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?!



Bilac, Olavo. "O caçador de esmeraldas e outros poemas". Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.   

15 de mai. de 2013

Iosif Landau: "Inseto"




Esta semana eu recebi, de Elena Landau, o último livro de poemas de seu pai: "Alarme". O livro é surpreendente! Iosif Landau começou a escrever aos 70 anos, mas a sua poesia tem um vigor, uma virilidade, um erotismo, um ritmo e uma intensidade juvenis. O poema que deixo agora apresenta, ainda, uma outra qualidade dessa obra: o humor.



Inseto


tá tudo em ordem:
não há herança nem dinheiro nem poupança.

testamento é folha em branco,
não há bens nem castelos na França.

tô bem de corpo e cabeça, não estou demente,
não deixo remédios nem camisa de força pros herdeiros.

apenas eu e minha imagem no espelho
coçamos os pentelhos o dia inteiro.

livros e discos e roupas e retratos
esperam pacientes os ratos festejarem.

descanso na tarde sombria sem companhia
quem se importa se ainda enxergo, ouço ou mijo?

amor, carinhos e abraços, do outro lado,
lamento não ter virado sabão no passado.

allons enfants de la Patrie,
le jour de gloire est arrivé

estou indo pro cacete
como todo inseto

nous y trouverons leur poussière



Landau, Iosif. Alarme. Belo Horizonte: Sografe, 2011. 



10 de mai. de 2013

Clara Favilla: A propósito de chuvas temporãs e chuvas serôdias






Deixo aqui um texto que achei muito bonito, de autoria da minha amiga Clara Favilla, a quem agradeço pelas observações elogiosas a meu respeito, as quais, de resto, não passam de expressão de uma italiana generosidade.



Dizem que usamos no máximo 200 palavras pra expressar o que queremos no dia a dia. Estamos acostumados a um vocabulário pobre e recorrente. Um  linguajar arroz com feijão, de tão básico. Como feijão parece que também está saindo de moda, melhor chamar esse linguajar de arroz com arroz. E daqueles sem sal, sem salsa ou qualquer especiaria. 

Jornais e revistas, noticiário televisivos, filmes até os de trama mais complexas, sem falar nas peça publicitárias, contribuem para essa nossa pobreza na comunicação oral e até escrita. Afinal, tudo precisa ser dito o mais rápido possível e com palavras que todo mundo entenda. 

A opção pelo óbvio reduziu muito o que entendíamos por clareza na exposição de ideias. Raro alguém garimpar aquela palavra sonora, bendita, na elaboração de textos de leitura diária e obrigatória. De vez em quando, tropeçamos em cacos, estilhaços dos filões de belezas soterradas. Alguém grita: "Eureka!". E navegamos pela Grécia Antiga, nas ondas ancestrais da filosofia. É bem verdade que alguns engraçadinhos, envergonhados de tal conhecimento, gritam: "Corega!". Sim, muitas vezes nos nivelamos por baixo para fazer parte do bando. 

Enquanto eu crescia, gostava de ouvir os antigos da família. Eles não estavam contaminado pelo vocabulário da hora. Uma das minhas avós dizia a palavra "alhures" com a maior naturalidade. Outra, soltava, aqui e acolá, um sonoro "quiçá". Nenhuma falava "lanche", nem "lancheira". Mas "merenda" e "merendeira". Rico era "nababo". E advogado, "rábula". Uma das minha avós falava portuliano como a maioria das avós da minha cidade. Achava simplesmente, quando criança, que elas eram apenas senhoras de um jeito muito próprio de se fazer entender pelos respectivos clãs. 

Avós também escreviam com grafia de outras épocas: "ella", "pharmácia", "cousa". Já faz algum tempo que o falar e o escrever andam perdendo a identidade geracional. Avós, filhos, netos e bisnetos falam as mesmas gírias e abreviam palavras ao escrevê-las. As vogais estão desaparecendo. Vejam:  "pq", "qd".  "Beijo" no singular é "bj". No plural, "bjs". O abraço quase desaparece num mesquinho "ab". No plural, "abs". 

Algumas consoantes também desaparecem quando escrevemos. A verdade empobreceu e é apenas vdd. E não culpem o Twitter. Essa redução já vem acontecendo faz tempo. Além disso, qual a parcela da população é tuiteira? Essas reduções de grafia podem ser comprovadas em bilhetes, cartas manuscritas e em e-mails de gente que nunca tuíta, que nunca manda mensagens de textos via celulares. Digamos assim, é uma tendência. Textos inteiros começarão a sair assim com palavras sem vogais e com um mínimo de consoantes. Quem viver verá. 

Uma boa oportunidade de se ouvir palavras mágicas, plenas de significado é frequentar igrejas. Nas católicas tem as leituras de passagens bíblicas e a do  Evangelho do dia. Pena que ao comentá-lo o padre de plantão recorra ao vocabulário mais rasteiro. Padres e pastores demolem qualquer vestígios de beleza em seus sermões ao comentar epístolas, salmos, parábolas. Os Evangelistas certamente tornaram-se cegos e surdos nas Alturas. Mesmo iluminadas em vida pelo Espírito Santo e transformados em plena luz depois da morte, não encontrariam palavras que traduzissem a ira terrível e santa pelo que fizeram  de suas palavras com o passar dos séculos. 

Bem, tudo o que escrevi tem a ver com post aqui neste blog* com o título Sobre indignações cínicas e Serôdias, do amigo Aetano. Confesso que precisei recorrer ao dicionário. Serôdio do latim "serotinus" - que age tarde, tardio. Adjetivo. 1. Que vem no fim da estação própria. 2. Que aparece ou acontece fora do tempo considerado próprio. 3. (Figurado) Que já se sabe há muito tempo, equivalente a antigo, velho. 

Não sei se a formação em Direito de Aetano é a causa dele nos brindar com tais pérolas. Pode ser o tipo de leituras que faz. Só sei que fico feliz quando preciso recorrer ao dicionário. Nem tudo está perdido. Há ainda pessoas neste mundo, dessas perto de nós,  que não se contentam com o linguajar da hora. Que usam natural e devidamente palavras cheias de conteúdo, ainda não desgastadas. Palavras que reluzem feito jóias raras, quando resgatadas da obscuridade ou de nichos nem sempre acessados. E nos fazem lembrar de chuvas temporãs e chuvas serôdias e o conteúdo místico que as envolvem desde o cerne. 



Clara Favilla
Mineira de Ouro Fino, mora em Brasília. 
Mãe de Isabel Favilla, flautista e fagotista barroca. 
Escreve por ofício e destino


8 de mai. de 2013

Norberto Bobbio: democracia liberal e democracia totalitária




Pensando no projeto hegemônico que pretende controlar a imprensa, manietar o Ministério Público, submeter o Supremo e sufocar a oposição, eu lembrei dessa pequena passagem de um texto de Bobbio:   




O que distingue os regimes de democracia ocidental dos de democracia chamada totalitária não é o fato de uns estarem fundados sobre o dissenso e outros sobre o consenso, mas sim que nos primeiros existe um consenso, o qual, contentando-se em ser o consenso dos mais ou da maior parte, baseado nas regras do jogo, admite o dissenso dos menos ou da minoria, enquanto nos segundos há um consenso que não admite o dissenso porque é ou pretende ser o consenso de todos. Como diz muito bem Alberoni, os regimes da democracia totalitária, em vez de deixarem àqueles que a pensam diferentemente o direito de oposição, ou, em outras palavras, o direito de dissenso, querem reeducá-los de tal modo que se tornem, por amor ou pela força, consencientes.




Bobbio, Norberto. "Existe consenso e consenso". In: "As ideologias e o poder em crise". Tradução de João Ferreira -- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 4a edição, 1999, p. 48.


6 de mai. de 2013

Aforismos





Se você enxerga toda e qualquer questão como uma disputa entre o azul-tucano e o encarnado-petista, recomendo um exame de vista. 



Triste Brasil, reduzido a um imenso pastoril.



1 de mai. de 2013

Aforismos





Que autoestima mais bem assentada,
essa que se sustenta sobre o nada!



Numa sociedade onde predomina a noção cordial dos direitos,
cada um quer um privilégio pra chamar de seu.



Homens e mulheres tornam-se cada vez mais parecidos e,
talvez por isso mesmo, cada vez mais reciprocamente irreconhecíveis. 



A celebridade é a nova autoridade.