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7 de set. de 2016

Ideias políticas na era romântica




A doutrina romântica é tão espetacular quanto assustadora: ela legitima de Beethoven ao Estado Islâmico.
  


"[...]


A noção do valor de um indivíduo, que consiste no grau em que ele é capaz de impor a sua vontade ao seu ambiente, é algo relativamente novo na consciência europeia. Anteriormente, a figura admirada era o sábio — o homem sensato que sabia como obter respostas para as perguntas que mais agitavam os outros homens, fossem práticas ou ideais, intelectuais ou morais, políticas ou teológicas. O que se admirava era, num certo sentido, o sucesso: a força, a coragem e a firmeza eram admirados por serem necessárias para atingir os propósitos humanos, e a sabedoria, a honestidade, o conhecimento eram valiosos, porque forneciam ao homem os propósitos e os meios corretos para atingir esses fins. Sem dúvida era correto lutar em condições de inferioridade, mas apenas se a causa fosse justa, apenas se aquilo pelo qual se lutava fosse um objetivo verdadeiro, em oposição aos falsos propósitos perseguidos por oponentes possivelmente mais fortes. Os mártires — Leônidas, Sócrates, os Macabeus, os primeiros cristãos — agiam corretamente porque davam testemunho da verdade e, se necessário, sacrificavam a vida a seu serviço. Mas se seus propósitos fossem falsos, se o patriotismo ou o serviço de Deus conforme concebido pelo cristianismo estivessem fundamentados num enorme erro espiritual ou moral, esses autossacrifícios, se não francamente tolos, seriam patéticos, passíveis de inspirar piedade ou simpatia pelas tristes vítimas de sua própria ignorância, como Ifigênia ou os pobres muçulmanos que, ao que se dizia, morriam bravamente por causa das bem-aventuranças do paraíso que o seu profeta lhes prometera, desde que morressem na batalha contra o infiel. Era um espetáculo sombrio, embora fosse comovente e até de partir o coração, ver homens intrépidos e honrados tão tristemente enganados; dar a vida por um ilusão não era um ato admirável como tal.


Mas, quase subitamente, no século XIX esse ato tornou-se não só admirável como mais admirável do que qualquer outra coisa. O novo herói romântico do século XIX é alguém — qualquer um — suficientemente desinteressado, puro de coração, incorruptível o bastante para ser capaz de dar a vida pelo seu próprio ideal interior. A verdade ou a falsidade do ideal se torna relativamente irrelevante. O que se admira não é a verdade, mas o heroísmo, a dedicação, a integridade de uma vida devotada e, se necessário, sacrificada no altar a um fim perseguido por si mesmo, por causa de sua beleza ou santidade para o indivíduo que o considera um ideal. Se o ideal é verdadeiro ou não — isto é, se ele se conforma a uma "dada" natureza das coisas — pouco importa.


Essa atitude assume muitas formas. O artista como herói é talvez a mais familiar. O artista é um homem que tem uma visão interior, algo que ele deve realizar a qualquer custo, traduzir em som, cor ou algum outro meio, não para proporcionar prazer aos outros, nem para obter proveito ou glória para si mesmo (embora esses tenham sido motivos respeitáveis o suficiente enquanto o artista era um artesão e, como todos os outros artesãos, exercia seu ofício honestamente para deleite dos outros e para o seu sustento e reputação), mas pura e exclusivamente pelo dever esmagador de expressar o que existe dentro de si, para dar testemunho da verdade ou expressar a sua visão de forma concreta. Acima de tudo, o artista, concebido nesses termos, não deve se vender por sucesso, dinheiro, poder ou qualquer outra coisa. Deve permanecer puro, para permanecer independente. A ele é permitido, quase esperado, excentricidades no modo de vestir, no comportamento, nas maneiras; ele pode ser tão rude e furioso quanto quiser, desde que nunca contemporize, desde que sempre fale a verdade nos lugares mais ilustres, não respeite ninguém no que concerne aos ideais que tem. A imagem de Beethoven que domina todo século XIX — o gênio pobre e desgrenhado na mansarda, infeliz e violento, o rebelde contra todas as convenções, incapaz e sem vontade de ajustar-se a qualquer um dos requisitos normais da sociedade polida, o dervixe sagrado, um homem eleito e devotado ao cumprimento de uma missão sagrada — era algo muito novo na consciência da humanidade ocidental. Começa sem duvida com Rousseau, assim como muito do que foi novo no século XIX: mas, claro, é também Karl Moor em Os assaltantes de Schiller, o fora da lei malvado, violento e quase criminoso, perseguido e vivendo perigosamente, que rompeu com as convenções da sociedade, porque suas falsidades e transigências lhe são intoleráveis, porque um homem livre não pode se submeter a uma estrutura que lhe é imposta por outros ou pela mão morta do passado, porque a missão do homem é proclamar os ideais que o dominam, se possível dentro de seu ambiente social, mas, se isso for ali proibido, que seja fora de seu meio e, se necessário, contra seu ambiente. 


A ênfase recai cada vez menos na verdade e validade de um tipo de vida ou sistema moral em relação a outro, e cada vez mais no valor supremo de gerar, cultuar ideais e a eles se sacrificar. O que é muito nobre e profundamente admirado é o espetáculo de um homem sozinho, sem ajuda, com todos os valores e forças convencionais contra ele, lançando-se à batalha porque não pode agir de outra maneira, porque um homem deve viver pelo seu ideal, seja qual for, e, se necessário, morrer por esse intento, mas acima de tudo jamais se vender aos filisteus, jamais trair a sua causa, jamais se permitir qualquer conforto que o faça afastar-se um centímetro sequer daquele caminho estreito que a visão dentro dele o manda seguir. Davi contra Golias, Lutero contra as legiões de Roma, eram modelos impressos na imaginação da humanidade protestante; mas eles eram heroicos e nobres porque tinham a razão a seu lado, porque Golias adorava os deuses dos filisteus, que eram deuses falsos, porque os sacerdotes de Roma haviam traído a sua herança. Os grandes hereges só eram admiráveis para quem pensava que eles estavam certos e a igreja errada, que eles conheciam a verdade e a igreja estava enganada ou enganava. Mas com a secularização da religião no século XVIII, esses valores religiosos se traduziram em termos morais e estéticos. Não foi porque Beethoven estava num certo sentido certo, e seus detratores musicalmente ortodoxos errados, que ele se tornou um herói. Foi a independência inflexível de sua personalidade moral, a veemência e a incapacidade para soluções de compromisso em questões que eram para ele fundamentais — no seu caso questões de música, mas poderiam ocorrer em qualquer esfera. Foi o fato de ele ter questões essenciais — a lutar por princípios como um fanático, sem calcular o custo — que fez sua imagem perdurar por tanto tempo na memória europeia. Carlyle pouco se importava se Maomé, o Dr. Johnson ou qualquer um dos seus outros heróis tinha respostas corretas para os grandes problemas humanos. O heroísmo não era uma questão de intelecto, sabedoria ou sucesso, isto é, ajuste ao plano racional da realidade, mas de força de vontade, de uma expressão violenta, contínua, irresistível da visão interior, uma questão de curvar-se diante do princípio absoluto — o imperativo categórico que significava um desafio completo a tudo o que obstruía e tolhia o homem no culto da sua luz interior.


[...]."


Berlin, Isaiah. Ideias políticas na era romântica: ascensão e influência no pensamento moderno. Tradução Rosaura Eichenberg -- São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 255/257). 

26 de abr. de 2016

Aforismo




O bom de ser de esquerda é que você ganha uma carteirinha de inimputável para poder fazer todas as atrocidades possíveis com boa consciência.

"Lágrimas da esquerda"




Excelente este artigo de Hélio Schwartsman, publicado na Folha de hoje (26/04/2016):

LÁGRIMAS DA ESQUERDA

O que me surpreende nessa novela do impeachment é que a esquerda ainda defenda a desastrada gestão de Dilma Rousseff.

O governo do PT meteu-se com esquemas pesados de corrupção e mostrou-se administrativamente incompetente. Alega-se que Dilma, como pessoa física, é honesta –com certeza mais honesta do que muitos dos que agora a condenam. Não duvido. Mas isso é muito pouco para transformá-la num modelo de virtude cívica. Ou bem a presidente é uma tonta, que não viu que pessoas ligadas ao partido e ao governo estavam se locupletando, ou então foi conivente com a corrupção. É verdade que os esquemas já existiam antes de ela chegar ao Planalto, mas a posição virtuosa aqui teria sido a de detoná-los publicamente, não tolerá-los em nome da governabilidade.

Para tornar o quadro ainda mais dramático, acho complicado até mesmo afirmar que as administrações do PT buscaram implementar políticas de esquerda. Parece mais preciso descrevê-las como populistas. Enquanto os ventos sopraram a favor, elas distribuíram benesses para todos –muito mais dinheiro foi destinado para empresários do que para os pobres, registre-se.

Em 13 anos de governos petistas, pautas históricas da esquerda, como o direito ao aborto e a descriminalização das drogas, foram tratadas como tabu pelo Executivo. O PT tampouco hesitou em sacrificar bandeiras que lhe eram caras, como a educação sexual nas escolas, sempre que seus aliados religiosos chiavam.

O caso do sindicalismo chega a ser grotesco. Nada foi feito pra implementar a convenção 87 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), aprovada no longínquo ano de 1948, que estabelece a liberdade sindical e que era defendida com unhas e dentes por Lula e pela CUT até chegarem ao poder.

Se há alguém que não deveria derramar nenhuma lágrima pelo governo Dilma, é justamente a esquerda.


1 de abr. de 2016

João e os leões





Com leões atemorizando a cidade, o povo, em assembleia, resolveu contratar João, um caçador de leões. 


João fechou contrato, mas reclamou das condições de trabalho: eram muitos leões, ele tinha poucos auxiliares e o salário não era lá essas coisas.

O povo prometeu atender aos pedidos de João, contanto que ele mostrasse resultados. João concordou e começou a trabalhar. 

Incansável, João caçava vários leões por dia. Mesmo assim, ao fim do expediente, o povo reclamava dos leões que ainda estavam soltos. 

Além disso, uns diziam que João só caçava leões nos bairros ao norte. Outros diziam que João só procurava leões nos bairros ao sul. 

Uma senhora, indignada, reclamou a João que estavam sobrando leões velhos, o que seria um sinal evidente de que ele preferia caçar os novos. 

João trabalhava dia e noite, sem entender por que não agradava e por que os leões não acabavam. "De onde surgiam tantos leões?", se perguntava ele. 

Até que um dia alguém do povo lhe deu uma resposta: "meu amigo, você não foi contratado para caçar leões. Você foi contratado para que pudéssemos exercer livremente a nossa selvageria. Está claro que você, sendo o melhor caçador que há no mundo, não pode dar conta dos leões. Nem mesmo se atendêssemos aos seus pleitos. Assim, está comprovado que é melhor deixá-los soltos. Você nos libertou dessa culpa. Nós tentamos. Como não conseguimos, como não há meio eficaz de caçar todos os leões, a solução é conviver com eles." 

Dias depois, em nova assembleia, o povo decidiu rescindir o contrato com João: receava na verdade que ele descobrisse quem eram os leões.